3 de abril de 2019

Estou dentro do trem e tem uma cobra no meu braço

Fui andando para a estação, como faço quase todos os dias. Por causa de um possível calo no mindinho do pé direito, meu sapato - o mesmo de quase todos os dias - parecia mais uma madona (aquela máquina de tortura na forma de um caixão cheio de estacas, não a cantora) do que um item de proteção para os meus pés, me fazendo levar o dobro do tempo habitual para chegar ao meu destino. Felizmente não era um dia de vento frio, porque já estava de bom tamanho andar mancando e cheia de bolsas, dada a minha inabilidade para ser objetiva; eu realmente não precisava chamar mais atenção com espirros e uma enxurrada de lágrimas. 

Enfim cheguei até a estação. O trem não havia chegado e na pontinha de um dos bancos havia uma mulher sentada. Sentei também, mas na ponta de um outro banco. Aos poucos as pessoas começaram a encher a estação. Como ainda faltavam cerca de 10 minutos para o trem chegar, algumas sentaram para esperar, claro; nenhuma ao meu lado, claro também. 

(Nesse ponto, é preciso abrir um parênteses para explicar uma coisinha: no meu Japão, dificilmente vi os japoneses sentarem próximos de estrangeiros; sendo eu uma mulher e estrangeira, então, as chances são quase nulas, mesmo que o assento ao meu lado seja o único disponível no ônibus, no trem ou na estação). Agora voltemos à estação...

O trem já havia chegado e escolhi sentar próximo a uma das portas, pois logo precisaria descer. Algumas pessoas entraram em seguida, na mesma e em outras estações e, num acordo velado entre elas, resolveram se espremer para caber num banco extenso posicionado à minha frente, enquanto o meu banco, igualmente espaçoso, permanecia quase vazio.

Mais uma parada. Dessa vez, um milagre: um jovem estudante sentou-se ao meu lado. Surpresa diante do acontecimento, me forcei a olhar para frente, em direção à paisagem que corria na janela, ao invés de olhar para o rapaz ao meu lado. Fiquei pensando sobre a quantidade de vezes que somos tocados por algo inesperado, assim como aquela borboleta que via da janela, pousando no galho de uma cerejeira, podia ser facilmente engolida por uma cobra qualquer dia desses e... Ahh! O que é isso no meu braço? Tem alguma coisa mole, se movendo em contato com a minha pele! Preciso olhar, preciso olhar, pode ser uma cobra. Coragem! Vou olhar: minha nossa! Era só um braço. O garoto ao meu lado estava procurando alguma coisa na mochila e por isso o braço dele encostava no meu. E veja só, ele parecia não se importar! Não sei o que deveria me surpreender mais nessa situação, o contato humano inesperado ou o fato do meu cérebro achar que seria mais plausível uma cobra tocar o meu braço do que um outro ser humano dentro de um trem numa cidade qualquer do Japão.

Cheguei ao meu destino e desci, quase rastejando, rumo à rotina que me esperava, me esgueirando entre os outros, tentando passar despercebida, como uma cobra, percebi, de repente.

28 de março de 2019

Sou o que posso ser




Um trem não pode andar sobre dois trilhos ao mesmo tempo. Eu também não, mas não sou um trem.

E as pedras que preenchem os espaços vazios entre os trilhos, será que podem tocar dois lugares ao mesmo tempo? Talvez sim, quando o trem está em cima delas e o chão está por baixo. Eu também posso tocar muitas coisas ao mesmo tempo: o ar, o chão, a roupa na pele, a pele de outras pessoas. Mas também não sou uma pedra.




Um pássaro pousa sobre a pedra que está nos trilhos do trem. Ele bica uma planta e se alimenta de algo que não posso ver. Um trem vem chegando e o pássaro aproveita enquanto pode, depois voa para longe, com a proximidade limite da máquina. Penso que o pássaro não queria ser a pedra, caso contrário estaria esmagado entre o trem e o chão. E se ele fosse o trem, se afastaria cada vez mais do alimento naquela planta, sem escolha, sem poder voltar atrás e ficar o quanto quiser. Se o pássaro fosse eu, sentiria medo de si, olhando o outro lado dos trilhos do trem, temendo que o pássaro voasse em sua direção.

O pássaro só pode ser o pássaro; eu posso ser eu.

28 de fevereiro de 2019

Flores de jambo

As pétalas das flores de jambo caíam no chão e formavam uma espécie de tapete de camurça rosa. Eu tinha vontade de deitar naquele tapete, mas nunca deitei. Havia formigas pelo chão e a minha vontade de contemplar era maior que a de experimentar.

Queria reter aquilo comigo para sempre. Nessa tentativa, levei um punhado de fios rosa para casa, guardei dentro da agenda, como toda adolescente faria. No entanto, para minha frustração, os fiapos rosa apodrecerem, ficando marrons e moles e um pouco úmidos. Parece que a beleza daqueles momentos, quando o jambeiro se preparava para dar frutos, só podia ser armazenada na memória.

Hoje, tão distante da minha adolescência e diante da impossibilidade de saborear um jambo, fecho os olhos e ainda vejo, não, ainda sinto aquele tapete diante de mim, se mostrando para todos e ninguém em especial, apenas existindo e fazendo o que precisava fazer.

E eu aqui, pensando no que deveria fazer. O que preciso fazer? O que quero fazer? Se desejo é o que fica depois que a necessidade passa, quais são os meus desejos? Mas, enquanto penso e não penso sobre isso, vou vivendo e fazendo o que precisa ser feito.

Talvez eu seja mais parecida com uma árvore do que podia imaginar. Mas não quero ser um jambeiro ou uma macieira... não quero ser uma árvore! O que quero ser? Novamente: o que desejo? Naquilo que desejo, eu sou. Mas como posso desejar a mim mesma? Como se faz isso?